Esperança Garcia, os meus passos vem de longe.

 

Esperança Garcia foi reconhecida como a primeira advogada do Piauí pela seccional da
OAB no estado e empresta nome ao auditório da UNB e a memorial em Teresina 
(Ilustração: Valentina Fraiz; Colagem: Aryelle Almeida)


No dia 6 de setembro de 1770 o primeiro Habeas Corpus (que se tem notícia) foi escrito por Esperança Garcia, mulher negra escravizada, reconhecida como a primeira advogada do Piauí. Esse HC foi escrito em forma de carta endereçada ao governador da capitania do Piauí, denunciando situações de violência que ela e outras mulheres, bem como seus filhos vivenciavam infligidas pelo administrador da fazenda, Antônio Vieira do Couto, em que habitavam

O documento foi encontrado no ano de 1979 por Luiz Mott, no arquivo público do Piauí. Tal carta constitui, até então, o texto mais antigo de reivindicação de direitos de uma pessoa escravizada a uma autoridade no Brasil. Levando em conta o contexto histórico e a natureza jurídica da carta, mesmo que não houvesse naquele período o direito formalmente constituído, é nítido que se trata de uma petição.

A carta, assim como Habeas Corpus, busca cessar atos abusivos, denunciando maus tratos e pedindo proteção ao Estado. Assim, Esperança Garcia exercia advocacia em nome próprio e de outras mulheres, bem como demonstrou conhecer as funções do Estado, das autoridades e o papel do governador, bem como entender e exigir seus raros direitos existentes na época.

O HC escrito por ela denunciava o fato de ter sido separada de seu marido e do impedimento de batizar as crianças. Em suas últimas linhas, Esperança redigiu: “Peço a Vossa Senhoria pelo amor de Deus ponha aos olhos em mim ordinando digo mandar ao procurador que mande para a fazenda aonde me tirou para eu viver com meu marido e batizar minha filha”.

Desse modo pode-se inferir que ao reivindicar por esses direitos específicos, Esperança aponta como conhecia os limites da legalidade, solicitando nada além do que aquilo que era legitimado, segundo as leis e costumes da época, lutando com as armas e as poucas possibilidades que o direito português a ofereciam. Além disso, ela usou a doutrina católica para sensibilizar o governador.

Na época em que a carta foi escrita, vigoravam as Ordenações Filipinas (de 1603 até 1830), legislação essa que no âmbito do direito civil considerava o escravizado como coisa, mas na ceara penal o via como pessoa responsável pelos crimes que cometesse. Além disso, a Ordenação trazia em seu bojo raros direitos, como um limite de chibatadas. 

Destarte, Esperança conseguiu achar pequenas frestas em um sistema que a desumanizava para pleitear com estratégia o que era possível dentro da legalidade e a autoridade competente. Ela, bravamente, abriu espaço para que minimamente o direito a família e ao batismo fosse solicitado. Se estamos onde estamos hoje, muito se deve a mulheres como ela, que com criatividade e coragem enfrentou estruturas poderosas.

Apesar de ser uma figura icônica para história do Brasil e do mundo, é recente o seu reconhecimento, apenas em 2017 Esperança recebeu, oficialmente, o título simbólico de primeira mulher advogada do Piauí durante solenidade no Auditório da Ordem dos Advogados do Brasil, Seccional Piauí.

Cronologicamente, Esperança é a primeira advogada do Brasil. Contundo, como não foi reconhecida pelo Conselho Federal da OAB, o posto é de Myrthes Gomes, que ingressou na advocacia em 1899. Nesse sentindo, existem reivindicações para que também a OAB Nacional reconheça Esperança Garcia como advogada.


Da vida de Esperança, no entanto, pouco se sabe e também não há certeza do que ocorreu com ela após o envio da carta. Especula-se que ela aprendeu a escrever com os jesuítas, na fazenda Algodões, até estes serem expulsos por ordem de Marquês de Pombal. Após a expulsão,  os jesuítas foram substituídos por agentes coloniais escolhidos pelo governador da capitania. Um desses agentes foi Antônio Vieira do Couto, que levou Esperança Garcia à força da fazenda de Algodões, onde ela vivia e tinha seu marido, para uma fazenda sob sua administração.

Outra suposição é que Esperança retornou à fazenda de Algodões onde vivia, na região próxima a Oeiras, a 300 quilômetros da futura capital, Teresina, após ter escrito a carta, pois um documento de 1778  com a relação de escravizados desta fazenda, menciona o casal Esperança e Ignacio, ela com 27 anos e ele com 57. Nesse sentido, ela teria  19 anos quando escreveu a carta ao governador.

Apesar de passados mais de 250 anos, a petição de Esperança Garcia é um documento atual, de forma atualizada o Estado ainda separa famílias negras, bem como não protege efetivamente o nosso direito a religião. A história de Esperança é a prova e simbolo de nossa resistência, nós sempre lutamos e reivindicamos nossos direitos. 

Conhecer e afirmar Esperança como advogada é uma reparação a nossa memória e identidade, é afirmar nosso protagonismo, porque para além da dor, houve resistência e criação. É grandioso que em pleno século XVIII, antes mesmo da Revolução Francesa, antes da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, mais de cem anos antes do Estado brasileiro reconhecer formalmente esse direito, Esperança tenha tido a bravura de lutar por seus direitos naquele contexto.

Uma história marcada pela indignação e pela coragem, Esperança Garcia precisa ser reverenciada na história da luta pelos direitos humanos, pois a luta pela dignidade, por viver livre das violências, do autoritarismo nasce das ruas, guetos, favelas, senzalas, lugares onde pessoas oprimidas insurgem por liberdade e igualdade. Por isso, lembrar e honrar a história de Esperança é um imperativo para a luta contra o racismo e por igualdade de gênero, raça e classe no Brasil, se hoje mulheres negras podem exercer a advocacia é porque nossos passos vêm de longe. 


Aryelle Almeida

Comentários

Postar um comentário