Mergulho em nós
Eu aprendi a gostar de ler e escrever muito cedo. Desde criança histórias como O menino sem imaginação, O menino do dedo verde, O espelho dos nomes, O pequeno príncipe, entre outros, me faziam viajar e mergulhar em mundos fantásticos. E é claro, não faltou na minha infância e na minha adolescência histórias que começavam com: Era uma vez… e terminavam com: Foram felizes para sempre. Histórias de princesas donzelas em perigo que se casariam com príncipes salvadores. Essas foram, por sinal, as primeiras histórias que li e que me embalaram em sonhos literários.
Mas, eu, menina preta, não era parecida com as princesas, nem era menino para viver as grandes aventuras do mundo, nem para ser super herói. Nas histórias em quadrinhos da Marvel (sempre preferi a Marvel do que a DC) que li, as únicas mulheres que ganhavam destaque era a Vampira e Jean Grey que de certo modo, pareciam com as princesas.
Na adolescência, lendo o Jorge Amado foi a primeira vez que me senti próxima dos personagens, não só por que eu conhecia os lugares em que aconteciam a histórias, mas porque os personagens tinham cor e classe, mas, mesmo assim, ainda tinha alguma coisa da qual eu sentia falta e não sabia denominar.
A primeira escritora que li foi aos 13 anos, lembro como se fosse hoje da primeira vez que li Laços de Família da Clarice Lispector e logo depois li A hora da estrela. Nesse momento, o mundo foi começando a se abrir em partes, e sempre me vinha essa vontade de ser Clarice e de revirar a existência do mundo, de colocar o dedo na ferida. A segunda foi a Joanne K. Rowling que me acompanha até hoje, pois ler e reler Harry Potter é uma das coisas que mais me deixa em paz no mundo.
E foi meio assim que eu cresci escrevendo e lendo grandes autores e grandes autoras, sem perceber que tirando os poucos personagens tudo era tão claro, tão distante de quem eu era. Até que na Universidade eu me deparei por acaso com a Maya Angelou e tudo mudou, eu me vi e me senti em cada palavra, já não mergulhava mais em outros mundos, mas em mim, eu mergulhava na nossa existência. Literalmente, meu mundo literário naquele momento, ganhou cor.
Da Angelou, foi um pulo para Conceição Evaristo, Carolina Maria de Jesus, Audre Lorde, bell hooks, Angela Davis, Toni Morrison, Alice Walker, Lima Barreto, Malcolm X, Ryane Leão, Cidinha da Silva e diversos escritores e escritoras pretas. Ler e estudar intelectualidades negras foi mais do importante por questões de representatividade, cada leitura foi um momento de cura.
Ler mulheres e homens negros preencheu meus vazios e me confirmou que a escrever também é “coisa de preto”. Conhecer esse literatura que é marginal nas escolas e na academia relevou uma riqueza ancestral apagada pelo epistemicídio.
E foi só depois de alguns muitos livros pretos lidos, é que eu percebi que o meu contato com intelectuais pretos e pretas começou muito antes de entrar na Universidade, afinal eu escuto minha vó desde que me entendo por gente, e Dona Antônia é a mulher mais inteligente que eu tive a honra de conhecer. Além disso, desde os dez anos eu escuto Sabotage, Racionais, MV Bill, Negra Li, RZO. Desde criança eu escuto samba, Elza Soares, Gilberto Gil, Margareth Menezes, Cartola. Como escreveu a Audre Lorde: “A poesia tem sido a voz dos pobres, da classe trabalhadora e das mulheres de cor.”
Nós somos fodas, inteligentes, criativos e é um processo doloroso tomar consciência disso. Afinal, apagar tudo que é de cor faz parte do projeto da nação, seja negando nossos saberes ou matando nossos corpos. Lélia Gonzalez a muito já nos dizia que: “O racismo epistêmico invalida consciente ou inconscientemente qualquer perspectiva de conhecimento que não seja ocidental e branca, tendo como base o pressuposto que considera a si mesmo como universal, isento e neutro, não compreendendo a sua própria especificidade/particularidade. Define o branco, o ocidental, especialmente o homem, como sinônimo da humanidade completa, assim sendo, o que não é branco é visto como incompleto e/ou não humano.”.
É por isso que sempre lembro da Conceição Evaristo – “nossa voz estilhaça a máscara do silêncio”, afinal, somos potências. Assim, eu escrevo para que minha voz se junte com outras tantas vozes e ecoem em prosas, poesias, rimas, melodias e discursos para que sigamos mostrando novas possibilidades de vivências para as que estão por vir.
Texto de Aryelle Almeida
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